sábado, 15 de fevereiro de 2014

CRIANÇAS COM QUEM BRINQUEI

Crianças com quem brinquei (Crónica de fim de semana)
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           Recordo os últimos anos da década de cinquenta do século XX, os garotos que me acompanharam na escola primária, crianças que a vida flagelou, filhos de mães que pariam quase todos os anos e de pais que se emborrachavam quase todos os dias.
Vínhamos de muitos dos lugares da freguesia, uns descalços outros com chancas todos com uma côdea de pão duro. Todos não, havia o Jorginho filho do Sr. Lopes e da Dona Regina, com botas de nos fazer inveja e a quem nos intervalos das aulas, uma empregada da casa trazia uma merenda, uma coisa do outro mundo para nós. Aprendíamos a ler e a escrever, decorávamos rios e as serras de Portugal, as descobertas, batalhas e outras glórias do país, que nos negava tudo. Passávamos o dia numa escola onde chovia, compreendíamos mal porque se chamava Posto Escolar e porque é que a nossa Professora era Regente Escolar. O vento, a chuva entravam pelas janelas onde faltavam vidros mas mesmo assim melhor que a nossa casa, onde o chão era terra e por cima apenas telhas sem forro.
A primavera e o outono aliviavam os corpos da dureza do clima. A chuva não fazia grande mossa, era pouca a roupa e o corpo conhecia dias piores.
Aprendíamos os cognomes dos reis e os nomes dos filhos bastardos, o esqueleto humano até ao último osso. Muitos desistiram, o abandono escolar era enorme e a necessidade de começar cedo a trabalhar era imperativa. As raparigas iam para criadas de servir os rapazes para trolha, ou com alguma felicidade para tecelões, a têxtil era um emprego de prestígio tornava mais fácil arranjar namorada tinha-se direito à Caixa. Sair da escola a saber ler e escrever dava uma boa expectativa, permitia alimentar a esperança de ir para afinador, o máximo que nos era permitido sonhar. Entretanto o Jorginho vivia a sua vida e uma coisa curiosa só tinha uma irmã ao contrario da maioria de nós, e o seu pai apesar de não frequentar as tabernas constava-se que bebia bebidas “estrangeiras” , para nossa maior confusão havia alguns bébés que nasciam sem pai. Alguns mais espevitados diziam ao Jorginho que eram irmãos dele, não sei, soube depois que eram registados como filhos de pai incógnito.
Nenhum aluno era proposto a exame da 4.ª classe sem dividir e classificar as orações sem hesitação, e todos os alunos que acabaram eram propostos a exame.
Nos intervalos das aulas os rapazes corriam para a horta do senhor Remina e as raparigas para a do senhor Gusto Patas, ou vice-versa, já lá vão tantos anos, e a memória apenas guarda a parede junto à qual circulavam os meninos, colados, para não pisarem o milho ou as batatas, o feijão de estaca e as alfaces, mas evitando trazer nos pés as fezes próprias ou alheias. Curioso ao Jorginho era-lhe tolerado ou a utilização da retrete da Professora ou mesmo a ida a casa, ainda que isso implicasse uma demora mais prolongada.
Depois aproveitávamos o tempo que restava para jogar ao pião, dar pontapés na bola de trapos ou saltar o trinta arreia mosca (que me lembre o Zé Lourenço e o Merco Rolha partiram uma perna), enquanto as meninas disputavam o terreiro a jogar à macaca e a saltar a corda.
Recordo-me do nome de todos, mesmo daqueles que logo ao sair da escola, ou pouco mais a vida levou para outras terras. Lembro-me bem do Tone Barracão, meu colega de carteira que juntamente como o irmão apenas com onze anos deu o salto para França, lembro-me dos que foram vítimas da guerra do ultramar, dos que emigraram, mesmo daqueles que nunca mais vi. E também me lembro do Jorginho, que será feito dele? Viverá ainda? Lembrar-se -á  de nós?
Conhecerá finalmente as irmãs e irmãos incógnitos? Ou aqueles que com ele aprenderam a ler serão apenas uma lembrança ténue e pouco consistente?
É possível, afinal andou connosco mas não fazia parte de nós.

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